No artigo que saiu em 7 de Julho no
Diário do Norte, mas que foi
escrito em 4, o Dr. Dias de Azevedo adoptou uma atitude positiva,
optimista, algo patriótica até. Por outro lado, manteve-se numa
postura serena, de análise objectiva, sábia. O contrário do que se
passara com o director do JN
a cujos dois últimos escritos ia fazer alguns reparos. É um dos
melhores escritos do médico.
A
DOENTE DE BALASAR
MAIS PALAVRAS SERENAS E DE VERDADE
(1953)
(7/7; saído também no
Estrela do Minho
no dia 12)
Portugal é hoje certamente um país de maravilhas que o Céu nos está
concedendo. Vivem nele almas de reparação abençoada e de imolação
contínua e talvez devido a essas almas heróicas tenhamos sido
poupados a grandes infortúnios. Era pois de esperar que o espírito
das trevas, para tudo desacreditar, quisesse macaquear o divino,
criando aparições imaginárias e suscitando imaginações doentias, a
dizer e a fazer coisas condenáveis e ridículas, que caíram e sempre
caem na censura e abandono de todos. É a sorte, hoje e sempre, de
todas as coisas e pessoas que assumem funções arbitrárias, que a
justa razão e os desígnios de Deus não aprovam.
Avançamos
mais: talvez haja em Portugal belas almas reparadoras, que além
disso vão percorrendo os caminhos e maravilhas da Mística,
apresentando os respectivos fenómenos, passando por sofrimentos
indizíveis, pelas chamadas noites de sentido e de espírito de que
falam S. João da Cruz
e a maior mulher da humanidade, depois da Mãe de Deus, que é Santa
Teresa,
dizendo esta “que essas almas não podem sofrer mais”. Para
distinguir esses casos e designar essas almas, não apelaremos para a
sentença do povo, mas para os técnicos, que os devem examinar e
estudar. Para a classificação desses fenómenos, para o estudo
clínico, neuropsiquiátrico dessas individualidades, devem ser
ouvidos os Médicos e os Teólogos, que na verdade sejam bons
psicólogos e filósofos, mas livres de preconceitos.
Por vezes ou quase sempre, só o trabalho dos Médicos e Teólogos é
que pode discernir esses casos da autêntica mística. Portanto, quem
não dominar esses assuntos, falando sem credenciais para isso,
falará de modo que a sua linguagem não pode ser “contada”, se assim
se quer dizer. E, por hoje e a propósito, mostrarei que:
1.º - Ainda não foi possível provar que a Alexandrina, a doentinha
de Balasar, era uma neuropata;
2.º - A ninguém disse, e a sua memória é fiel, que Deus não quer que
se alimente. Isto e muito mais já foi demonstrado, noutro jornal,
por mim, em 1947.
1.ª Consideração: - Ninguém, depois dum estudo atento, com razão
poderá afirmar que o cérebro da Alexandrina Maria da Costa é
instável e portador de ideias fixas ou de sintomas de anorexia
mental, porque a doente sempre apresentou o mais nítido equilíbrio
mental e o mais admirável bom senso, pelo menos durante estes doze
anos da minha assistência clínica, e as ideias fixas (sem prejuízo
de todas aquela ideias que deve ter quem sensatamente quer viver
neste mundo, cumprindo a sua missão perante Deus e o homens) são a
maior glória de Deus, a conversão dos pecadores e a salvação das
almas.
Se isto ou coisa equivalente é ter ideias fixas, no sentido
depreciativo que a Psiquiatria lhes atribui, então os mais ilustres
luminares da Ciência, os maiores heróis da Santidade e das grandes e
elevadas acções que a História regista não passam de doidos ou
diminuídos mentais e a fina flor da humanidade – as melhores almas
do mundo, de que Renan lastimava ver-se isolado, podem ser acusados
de ter ideias fixas, recaindo sobre elas a desconfiança de serem
histéricas em maior ou menor grau ou possuídos de qualquer
psico-nevrose.
Felizmente passou o tempo, para os maiores intelectuais
contemporâneos, em que a actividade mística era tida como uma
inferioridade mental e até como uma manifestação mórbida: passou o
tempo em que os místicos eram tidos como desequilibrados,
histéricos, anormais, psicasténicos, degenerados e eu sei lá que
mais. Bergson, contra muitos, provou, na sua obra Les Deux
Sources de la Morale et de la Religion, que a Mística era a
actividade suprema do espírito humano, mostrando que os místicos
cristãos não eram loucos nem desequilibrados, mas sim o próprio
modelo do equilíbrio, da robustez e da saúde do espírito. E o grande
Carrel chegou a essa mesma conclusão no seu O Homem, esse
Desconhecido. E assim poderemos, sem receio de desmentido
razoável e que o tempo justifique, afirmar que a Alexandrina Maria
da Costa é dotada dum cérebro cheio de equilíbrio e dum admirável
bom senso, sendo as suas ideias fixas aquelas que deveriam possuir
todos os cristãos que quisessem deveras honrar o Mestre e Senhor.
É
que não tem cérebro instável, nem pode ser suspeita de histeria ou
anorexia mental aquela que tendo carácter firme, constante e
resoluto, é senhora de si e das suas paixões e verdadeiramente fiel
às suas resoluções até ao seu cumprimento exacto. Não tem cérebro
instável nem pode ser suspeita de histeria ou anorexia mental quem,
desde a sua infância, prometeu a Deus servi-Lo com toda a sua alma e
coração, e sempre o tem feito, com a maior constância e heroísmo, no
meio das maiores dores e das maiores alegrias espirituais, sem
cambiantes de humor e sem a menor incoerência nos seus actos, nas
suas palavras e nas suas atitudes, praticando as virtudes cristãs
com a maior perfeição e mais perfeito bom senso, sem imaginação
desregrada e sem qualquer extravagância moral ou física, dominando
sempre os movimentos do seu coração e as suas paixões.
Os histéricos, segundo todos os mestres da histeria, têm uma
imaginação ardente, uma grande tendência para a mentira, para a
vaidade, para o coquetismo, para a irascibilidade, para o exagero de
tudo, e nós podemos ver que a Alexandrina tem uma imaginação bem
regulada, a ponto de ninguém lhe notar qualquer imoderação nas
atitudes ou palavras, tem um amor inexcedível à verdade, é a
humildade personificada, no sentido cristão da palavra, é sensata,
muito simples, embora muito inteligente, paciente com heroísmo,
nunca triste nem melancólica, sempre serena e resignada, sempre
ordeira e coerente, em nada exagerada, sendo seu gosto que ninguém
se ocupe dela com particularidades censuráveis.
Isto é, a Alexandrina não apresenta os menores sintomas nem da
grande, nem da pequena, nem da benigna histeria nem de anorexia
mental. Lembrarmo-nos pois de classificá-la de histérica, porque os
jejuns totais e as anorexias demoradas matam, e ela não morreu
durante os 40 dias de anúria e abstinência absoluta de sólidos e
líquidos, constatados por várias testemunhas com o maior rigor, isso
é não explicar um efeito por uma causa proporcionada – base de
toda a ciência, é lamentavelmente esquecer o conselho muito bem
dado de que devemos “aguardar que uma explicação faça a necessária
luz”. Classificá-la de histérica, porque as suas ideias fixas, à
volta das quais andam todas as outras ideias, são o amor de Deus e a
salvação das almas é certamente preconceito que Renan muito admirava
nos seus dias de saúde e vanglória, mas que nem todos perfilharão.
2.ª Consideração: - Esta doente não se
alimenta porque todo o alimento ingerido é vomitado, à custa de
muitas dores e aflições, e, depois de várias experiências, neste
sentido, sabe que passa melhor não se alimentando. É por esta razão
que não se alimenta, embora sinta ânsias de ingerir alimentos,
e afirma que a ninguém disse
que sabia por Deus ou por qualquer individualidade que não devia
alimentar-se. Como ainda vive, sobre o caso pode ser interrogada.
Nós, os católicos, podemos estudar estes casos com serenidade. A
nossa fé não se baseia nos milagres e maravilhas contemporâneos
(milagres que só a Igreja Católica apresenta) e tem bases muito
sólidas e inteiramente racionais. Podemos ser, sem custo,
imparciais. Mas para os descrentes, se os milagres de ontem e de
hoje existem, está em crise a sua filosofia pseudocientífica e, se
quiserem ser coerentes, têm de rectificar as suas ideias e, por
vezes, a sua vida moral. “Hoje, como em todos os tempos, o edifício
da crença religiosa só começa a vacilar quando o edifício moral já
está em ruínas”, escreveu isto um dos maiores pensadores
portugueses. E assim o disse François Coppée
e tantos novos convertidos, alguns dos quais são a glória da
Ciência. E, por hoje, ponto final.
Ribeirão, 4 de Julho de 1953.
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