DR. MANUEL AUGUSTO DIAS DE AZEVEDO

O ARTIGO DE 7 DE JULHO

 

No artigo que saiu em 7 de Julho no Diário do Norte, mas que foi escrito em 4, o Dr. Dias de Azevedo adoptou uma atitude positiva, optimista, algo patriótica até. Por outro lado, manteve-se numa postura serena, de análise objectiva, sábia. O contrário do que se passara com o director do JN a cujos dois últimos escritos ia fazer alguns reparos. É um dos melhores escritos do médico.

 

A DOENTE DE BALASAR

MAIS PALAVRAS SERENAS E DE VERDADE
(1953)

 

(7/7; saído também no Estrela do Minho no dia 12)

Portugal é hoje certamente um país de maravilhas que o Céu nos está concedendo. Vivem nele almas de reparação abençoada e de imolação contínua e talvez devido a essas almas heróicas tenhamos sido poupados a grandes infortúnios. Era pois de esperar que o espírito das trevas, para tudo desacreditar, quisesse macaquear o divino, criando aparições imaginárias e suscitando imaginações doentias, a dizer e a fazer coisas condenáveis e ridículas, que caíram e sempre caem na censura e abandono de todos. É a sorte, hoje e sempre, de todas as coisas e pessoas que assumem funções arbitrárias, que a justa razão e os desígnios de Deus não aprovam.

Avançamos mais: talvez haja em Portugal belas almas reparadoras, que além disso vão percorrendo os caminhos e maravilhas da Mística, apresentando os respectivos fenómenos, passando por sofrimentos indizíveis, pelas chamadas noites de sentido e de espírito de que falam S. João da Cruz[1] e a maior mulher da humanidade, depois da Mãe de Deus, que é Santa Teresa[2], dizendo esta “que essas almas não podem sofrer mais”. Para distinguir esses casos e designar essas almas, não apelaremos para a sentença do povo, mas para os técnicos, que os devem examinar e estudar. Para a classificação desses fenómenos, para o estudo clínico, neuropsiquiátrico dessas individualidades, devem ser ouvidos os Médicos e os Teólogos, que na verdade sejam bons psicólogos e filósofos, mas livres de preconceitos.

Por vezes ou quase sempre, só o trabalho dos Médicos e Teólogos é que pode discernir esses casos da autêntica mística. Portanto, quem não dominar esses assuntos, falando sem credenciais para isso, falará de modo que a sua linguagem não pode ser “contada”, se assim se quer dizer. E, por hoje e a propósito, mostrarei que:

1.º - Ainda não foi possível provar que a Alexandrina, a doentinha de Balasar, era uma neuropata;

2.º - A ninguém disse, e a sua memória é fiel, que Deus não quer que se alimente. Isto e muito mais já foi demonstrado, noutro jornal, por mim, em 1947.

1.ª Consideração: - Ninguém, depois dum estudo atento, com razão poderá afirmar que o cérebro da Alexandrina Maria da Costa é instável e portador de ideias fixas ou de sintomas de anorexia mental, porque a doente sempre apresentou o mais nítido equilíbrio mental e o mais admirável bom senso, pelo menos durante estes doze anos da minha assistência clínica, e as ideias fixas (sem prejuízo de todas aquela ideias que deve ter quem sensatamente quer viver neste mundo, cumprindo a sua missão perante Deus e o homens) são a maior glória de Deus, a conversão dos pecadores e a salvação das almas.

Se isto ou coisa equivalente é ter ideias fixas, no sentido depreciativo que a Psiquiatria lhes atribui, então os mais ilustres luminares da Ciência, os maiores heróis da Santidade e das grandes e elevadas acções que a História regista não passam de doidos ou diminuídos mentais e a fina flor da humanidade – as melhores almas do mundo, de que Renan lastimava ver-se isolado, podem ser acusados de ter ideias fixas, recaindo sobre elas a desconfiança de serem histéricas em maior ou menor grau ou possuídos de qualquer psico-nevrose.

Felizmente passou o tempo, para os maiores intelectuais contemporâneos, em que a actividade mística era tida como uma inferioridade mental e até como uma manifestação mórbida: passou o tempo em que os místicos eram tidos como desequilibrados, histéricos, anormais, psicasténicos, degenerados e eu sei lá que mais. Bergson, contra muitos, provou, na sua obra Les Deux Sources de la Morale et de la Religion, que a Mística era a actividade suprema do espírito humano, mostrando que os místicos cristãos não eram loucos nem desequilibrados, mas sim o próprio modelo do equilíbrio, da robustez e da saúde do espírito. E o grande Carrel chegou a essa mesma conclusão no seu O Homem, esse Desconhecido. E assim poderemos, sem receio de desmentido razoável e que o tempo justifique, afirmar que a Alexandrina Maria da Costa é dotada dum cérebro cheio de equilíbrio e dum admirável bom senso, sendo as suas ideias fixas aquelas que deveriam possuir todos os cristãos que quisessem deveras honrar o Mestre e Senhor.

É que não tem cérebro instável, nem pode ser suspeita de histeria ou anorexia mental aquela que tendo carácter firme, constante e resoluto, é senhora de si e das suas paixões e verdadeiramente fiel às suas resoluções até ao seu cumprimento exacto. Não tem cérebro instável nem pode ser suspeita de histeria ou anorexia mental quem, desde a sua infância, prometeu a Deus servi-Lo com toda a sua alma e coração, e sempre o tem feito, com a maior constância e heroísmo, no meio das maiores dores e das maiores alegrias espirituais, sem cambiantes de humor e sem a menor incoerência nos seus actos, nas suas palavras e nas suas atitudes, praticando as virtudes cristãs com a maior perfeição e mais perfeito bom senso, sem imaginação desregrada e sem qualquer extravagância moral ou física, dominando sempre os movimentos do seu coração e as suas paixões.

Os histéricos, segundo todos os mestres da histeria, têm uma imaginação ardente, uma grande tendência para a mentira, para a vaidade, para o coquetismo, para a irascibilidade, para o exagero de tudo, e nós podemos ver que a Alexandrina tem uma imaginação bem regulada, a ponto de ninguém lhe notar qualquer imoderação nas atitudes ou palavras, tem um amor inexcedível à verdade, é a humildade personificada, no sentido cristão da palavra, é sensata, muito simples, embora muito inteligente, paciente com heroísmo, nunca triste nem melancólica, sempre serena e resignada, sempre ordeira e coerente, em nada exagerada, sendo seu gosto que ninguém se ocupe dela com particularidades censuráveis.

Isto é, a Alexandrina não apresenta os menores sintomas nem da grande, nem da pequena, nem da benigna histeria nem de anorexia mental. Lembrarmo-nos pois de classificá-la de histérica, porque os jejuns totais e as anorexias demoradas matam, e ela não morreu durante os 40 dias de anúria e abstinência absoluta de sólidos e líquidos, constatados por várias testemunhas com o maior rigor, isso é não explicar um efeito por uma causa proporcionada – base de toda a ciência, é lamentavelmente esquecer o conselho muito bem dado de que devemos “aguardar que uma explicação faça a necessária luz”. Classificá-la de histérica, porque as suas ideias fixas, à volta das quais andam todas as outras ideias, são o amor de Deus e a salvação das almas é certamente preconceito que Renan muito admirava nos seus dias de saúde e vanglória, mas que nem todos perfilharão.

2.ª Consideração: - Esta doente não se alimenta porque todo o alimento ingerido é vomitado, à custa de muitas dores e aflições, e, depois de várias experiências, neste sentido, sabe que passa melhor não se alimentando. É por esta razão que não se alimenta, embora sinta ânsias de ingerir alimentos, e afirma que a ninguém disse que sabia por Deus ou por qualquer individualidade que não devia alimentar-se. Como ainda vive, sobre o caso pode ser interrogada.

Nós, os católicos, podemos estudar estes casos com serenidade. A nossa fé não se baseia nos milagres e maravilhas contemporâneos (milagres que só a Igreja Católica apresenta) e tem bases muito sólidas e inteiramente racionais. Podemos ser, sem custo, imparciais. Mas para os descrentes, se os milagres de ontem e de hoje existem, está em crise a sua filosofia pseudocientífica e, se quiserem ser coerentes, têm de rectificar as suas ideias e, por vezes, a sua vida moral. “Hoje, como em todos os tempos, o edifício da crença religiosa só começa a vacilar quando o edifício moral já está em ruínas”, escreveu isto um dos maiores pensadores portugueses. E assim o disse François Coppée[3] e tantos novos convertidos, alguns dos quais são a glória da Ciência. E, por hoje, ponto final.

Ribeirão, 4 de Julho de 1953.


[1] São João da Cruz (24 de Junho de 1542 – 14 de Dezembro de 1591) foi um místico, sacerdote e frade carmelita espanhol.

[2] Teresa de Ávila, conhecida como Santa Teresa de Jesus (28 de Março de 1515 — 4 de Outubro de 1582), nascida Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada, foi uma freira carmelita e mística do século XVI.

[3] François Edouard Joachim Coppée (26 de Janeiro de 1842 – 23 de Maio de 1908), poeta e romancista francês.

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